Este é o segundo texto de uma série, iniciada há algumas semanas aqui no blog, sobre as relações entre partidos políticos e movimentos sociais. No texto anterior, apontamos como diferença fundamental entre esses dois tipos de organização o fato de apenas os partidos poderem apresentar candidaturas a cargos eletivos – algo o que o cientista político italiano Angelo Panebianco chamou de “monopólio da competição eleitoral”.
Além disso, é preciso ter em conta que as relações entre eles podem assumir diferentes formas, como as elencadas a seguir:
– Complementaridade: quando pautas de um ou outro são coincidentes;
– Cooptação: quando partidos políticos agregam pautas e militantes oriundos dos movimentos sociais durante a competição eleitoral; ou quando ocorre o inverso, movimentos “usam” partidos para chegar ao poder;
– Disputa: quando há divergências entre ambos quanto às pautas e/ou aos métodos de se influenciar o Estado;
– Independência: quando não há convergência entre a atuação dos partidos e dos movimentos sociais;
Neste texto, vamos utilizar duas dessas formas (cooptação e de independência) para tratar das relações entre legendas partidárias e movimentos sociais no Brasil recente.
O descontentamento e a desconfiança em relação aos partidos políticos é um fenômeno global. Na Europa, o encastelamento dessas organizações no Estado e a chamada cartelização dos partidos – agindo como guardiões (gate-keepers) da entrada para o sistema político – fizeram com que as legendas se distanciassem da sociedade civil, principalmente a partir da década de 80, como destacado pelos cientistas políticos Richard Katz e Peter Mair.
No Brasil, a aversão aos partidos é um traço característico de nossa vida política. Desde a primeira experiência democrática (1946-1964), as críticas a essas organizações estiveram presentes no debate público. Cenário que foi agravado pela onda de desconfiança referida acima: em pesquisa recente, realizada pelo Instituto DataFolha, o número de desconfiados em relação aos partidos foi de 58% da população.
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Nesse contexto, diversas tem sido as estratégias de lideranças partidárias e movimentos sociais para reverter esses números ou para se aproveitar desse cenário de desconfiança. No primeiro caso, há, por exemplo, um movimento – sem nenhuma garantia de sucesso – de mudança dos nomes das legendas, com a exclusão do termo “partido” de suas nomenclaturas: o PMDB, por exemplo, voltou a se chamar MDB; o PFL virou Democratas, o PPS agora é Cidadania e assim por diante.
No segundo caso, movimentos sociais teoricamente apartidários tem se engajado no debate público, mas também na competição eleitoral. Organizações como Acredito, RenovaBR, Agora e Ocupa Política, por exemplo, apresentaram candidatos nas eleições de 2018. Outros movimentos, mais antigos, como o MBL e o Livres, também buscaram representação através dos partidos.
É possível analisar a interação desses movimentos com os partidos usando os pontos de vista da cooptação e da independência referidos acima, além de elevados níveis de tensão. Os movimentos Acredito e RenovaBR foram fundados em 2017, um ano antes do pleito, com o intuito de dar suporte – financeiro e educacional – para candidatos que deveriam renovar a política brasileira. Como a candidatura a cargo eletivo no Brasil, segundo os ditames da Constituição, deve ser feita necessariamente via partido, essas organizações assinaram cartas de compromisso com legendas de diversos espectros políticos: do PSL ao PSB.
Nesse contexto, a cooptação ocorre por interesse mútuo: integrantes de movimentos sociais interessados em disputar cargos eletivos precisam dos partidos para fazê-lo; estes últimos, por sua vez, podem beneficiar-se de diversas formas ao abrigar esses atores – renovando ou diversificando seus quadros, ganhando visibilidade, cadeiras legislativas etc.
Depois de eleitos, no entanto, a atuação de parte dos parlamentares oriundos dos movimentos referidos acima acabou provocando tensões entre eles e os partidos pelos quais se elegeram.
Parlamentares como Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-RJ), por exemplo, votaram contra a orientação de seus partidos na Reforma da Previdência, em 2019, e buscam na Justiça Eleitoral o direito de se desfiliarem sem perder seus mandatos. O deputado estadual por São Paulo Arthur do Val, integrante do MBL, mas eleito pelo DEM, foi expulso da legenda por votar contra a orientação da liderança partidária.
Além disso, partidos como o Novo e o PDT reformaram seus estatutos para impedir a presença, a partir de 2020, de candidatos vinculados a movimentos. Partidos como PSDB, PT e Cidadania, por sua vez, reativaram ou reforçaram programas de educação política, com vistas a formar seus próprios quadros.
O que essa relação de tensão expõe é a disputa por poder. As legendas partidárias, apesar de enxergadas com desconfiança por boa parte da opinião pública, ainda mantém o monopólio da disputa eleitoral e, com isso, o monopólio da representação política. Em Congressos centralizados como o brasileiro, a liderança partidária possui incentivos e mecanismos para disciplinar suas bancadas – com o que muitos dos parlamentares vinculados a movimentos sociais parecem não concordar.
Por outro lado, a descrença nos partidos e na classe política serve como plataforma à ascensão de lideranças personalistas. À medida que essas instituições perdem a confiança da opinião pública, soluções baseadas no carisma pessoal, em uma moralidade autoproclamada ou no populismo escancarado se transformam nas opções mais atrativas do cardápio.
Dessa forma, a descrença nas instituições em geral e nos partidos em específico tem custos elevados para o funcionamento dos regimes democráticos. E mesmo que os movimentos sociais sejam instrumentos legítimos e necessários ao aperfeiçoamento das democracias, eles também podem contribuir para o desgaste de suas instituições típicas.
Imagem Destaque: Divulgação Renova BR.

Tiago Alexandre Leme Barbosa
Cientista Social. Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Escreve e atual como pesquisador nas áreas de partidos políticos, elite partidária e novos partidos.

Bruno Marques Schaefer
Cientista Social. Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Escreve e pesquisa sobre partidos políticos e financiamento eleitoral. Atua como membro pesquisador nos grupos “Partidos e Coligações Eleitorais na Nova Democracia Brasileira” e “Radiografia dos Novos Partidos brasileiros: Gêneses e Trajetórias”.
Referência
Katz, R. & Mair, P. 1995. Changing models of party organization and party democracy: the emergence of the cartel party. Party Politics, vol. 1, nº 1, p. 5-28.